A volta ao mundo quando tinhas 30 anos, Aya Koretzky (2018)
COMPETIÇÃO PORTUGUESA
doclisboa'18
Cento e onze minutos a dar a volta ao mundo mergulhados numa cápsula do tempo desenterrada por quem a criou, recheada de recordações e intimidade, é assim que Aya Koretzky partilha connosco as memórias que seu pai com ela partilhou.
A narrativa deste filme é construída sob uma sequência temporal alternada entre o presente e o passado, entre o encontro com as fotografias de viagem tiradas pelo seu pai e o seu quotidiano atual. O presente e o passado coexistem em sincronia com o que é narrado a partir do diário das viagens. A leitura dessas palavras é realizada pelo seu pai, mas posteriormente é interrompida pela sua visão que não o permite continuar a ler, sendo continuada por um amigo de família que auxilia Aya Koretzky a interpretar as palavras japonesas que nunca conseguiu aprender, embora as saiba falar. No princípio a lupa é a principal auxiliar da visão de seu pai, mas talvez também um símbolo daquilo que se encontra ofuscado pelo tempo que já passou. O pai observa pela lupa aquilo que já viveu, os sítios por onde passou e as recordações que com o tempo ficaram perdidas. As imagens diluem-se dentro da memória, sendo necessário recorrer às palavras do diário para que as narrativas pertencentes às fotografias não se percam no presente. A memória falha e as fotografias necessitam do auxílio das palavras. Enquanto assistimos à passagem daquelas fotografias, de qualquer coisa à qual não pertencemos e que não é nossa, assistimos simultaneamente ao seu reencontro por quem já as viveu. Sob um olhar atento da sua filha, observamos o desenrolar de uma viagem e as peripécias que a acompanharam.
O som constrói o movimento e a vida que existe nas diferentes fotografias. Cada fotografia, cada lugar, ambiente e cada país é representado por diferentes sons. Através do som conseguimos mergulhar dentro do ambiente que cada fotografia contém, seja através de ruídos, buzinas de automóveis, murmúrio de pessoas, palavras soltas que nos fazem associar a um país diferente, sons da natureza, e ainda músicas tradicionais das diferentes culturas que visitou. É o som que nos transporta para o momento em que a fotografia foi tirada, o som aproxima-nos das sensações que o pai de Koretzky sentiu no momento da captação da imagem.
No seu pai, encontramos uma visão peculiar e uma forma clara de descrever o que o rodeia, o ocidente é nos descrito por um olhar pragmático- que talvez seja característico da cultura japonesa. Um olhar objetivo, mas que não perde a sua espiritualidade e mística de olhar o mundo. É de realçar a grande importância que os jardins têm na sua vida, todas as filmagens no presente são realizadas na sua casa onde o vemos a realizar várias tarefas de manutenção do seu jardim. Ele conta-nos que a sua profissão de jardineiro o acompanhou durante toda a sua vida, e que este gosto advém também da aspiração que tinha em ser arquiteto paisagista. O seu olhar distanciado examina os jardins ocidentais com grande atenção, comparando-os aos tradicionais jardins japoneses. Observa que na Europa manipulamos a natureza utilizando a simetria e a geometrização, como formas de exaltar a sua força, beleza e o seu rigor. Já no Japão, conta-nos que os jardins são mais orgânicos e que idealizam a natureza, organizados por princípios estéticos que necessitam de uma constante manutenção para que todos os seus elementos estejam em permanente harmonia. É com um olhar reflexivo e contemplador que ele compara estes dois modos distintos de organizar a natureza, mas que, apesar das suas diferenças, ambos têm o mesmo objetivo de enaltecer a sua magnificência.
Por último, é de realçar o momento peculiar em que no filme o seu pai nos confronta com um disparo fotográfico que aponta na nossa direção. Uma polaroid sai desse disparo e por alguns instantes assistimos ao momento em que o papel fotográfico é abanado, os seus químicos misturados, e o aparecimento da imagem captada vai surgindo lentamente. Esta fotografia mostra-nos um retrato de Aya Koretzky onde a vemos com a sua máquina de filmar, e é este o único momento em que somos confrontados com a sua figura que durante todo o filme permaneceu ausente. Neste momento assistimos ao nascimento de uma fotografia, ao confronto entre duas máquinas, ao olhar de um pai e o olhar de uma filha. A fotografia congelou um momento, personificando a construção intercalada de que é composta todo o filme- uma alternância entre fotografias de arquivo captadas pelo seu pai e imagens filmadas pela sua filha.
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